quinta-feira, 14 de julho de 2011

Uma infância sem desculpas

Por mais que a região de Shizuoka não fosse a mais fria de todas no Japão, no inverno fazia um frio que não se comparava de forma nenhuma com o inverno brasileiro. No Japão, desde cedo as crianças aprendem sobre deveres, obrigações, responsabilidades e independência. Ninguém vai à escola de ônibus, de carona com o pai ou a mãe, todos íamos à pé.
No calor ou no frio, os meninos vestiam shorts e as meninas saias, ninguém usava calças à não ser que estivesse doente o suficiente para isso. "A saúde está nas pernas" diziam para mim no começo quando eu não entendia aquilo tudo.
No almoço, quando nós mesmos servíamos a nossa comida na sala de aula que se transformava num refeitório, ninguém podia deixar sobrar comida no prato. Você é responsável pelo que come, pelo que os olhos comem. Se colocou, se pediu para colocar na badeja, tem que comer tudo. Certa vez, logo nos meus primeiros dias de aula, eu fiz o que os brasileiros fazem por sua "educação", deixei comida no prato e a hora do almoço se prolongou, porque tive que comer tudo sob o olhar de todos que já tinham acabao de comer.
Mas num país que viveu na fome, na dor, na tristeza das consequências de uma guerra, quem são os brasileiros para julgar tal cultura? Viver, crescer e aprender com o Japão nada mais é do que aprender à viver sem desculpas. Porque justificativas e desculpas são realmente para quando você precisa delas.

Fora da escola, eu tinha exatamente as mesmas lições dentro do Karate-Do. Era puxado e meu irmão sempre cobrava uma responsabilidade extra pelo fato de ser o seu irmão mais novo. Teve dias em que eu quis faltar, porque estava cansado(o meu irmão nem estava), porque tinha coisas para fazer(todos nem tinham), porque queria me divertir(os outros nem queriam), porque queria estar com meus amigos(niguém queria), porque tive medo(ninguém nunca teve) ou simplesmente porque estava com preguiça(ninguém sente preguiça).
A verdade é que todos sentem e todos sem excessão se encontram sob as mesmas condições, dar-se o direito de não fazer algo com uma desculpa dessas citadas acima é simplesmente dentro do Budo uma amostra de falta de humildade, já que se todos se encontram sob efeito das mesmas coisas, por que só você teria direito de usá-las à seu favor?

Então, eu vivi a minha infância e os primeiros anos do meu Karate-Do aprendendo sobre desculpas. Aprendendo que todo mundo tem desculpa para tudo, mas que não era isso que interessava no final das contas porque as desculpas só fazem pessoas genéricas. E o verdadeiro Karate-Do(como todos gostam de citar e poucos gostam de praticar) se trata de fazer a diferença.

Com o passar do tempo, o óbvio de tudo é ser difícil, esperar que seja difícil e o fácil é só uma agravável surpresa passageira que você aproveita, vive, mas não se dá o direito de acostumar. Ao encarar as coisas dessa forma, creio que é possível viver uma vida sem falsas desculpas.

Claramente, existe o bom senso. Todos somos de carne e osso, o Hanshi Konomoto, o Sensei Nagatani, o meu irmão Akira, todos eles tinham sangue correndo pelas suas veias, mas até podermos admirar esse sangue e sangrarmos da mesma forma, primeiro, antes de tudo é necessário aprender sobre a vida sem desculpas.

E um dia, olhando para as próprias justificativas que por opção foram deixadas para trás através do silêncio, há de se descobrir o significado do "Bom" senso.

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