A bagagem ainda era pouca. Mas lá estava eu, prestes à competir em um evento internacional. O primeiro e logo de primeira já um campeonato mundial. Naturalmente, como eu ainda era muito novo de Karate e obviamente também muito novo nas competições de karate, não havia pressão alguma por resultados. Porém, quem compete sabe que, uma vez que se está ali dentro de uma quadra executando o seu papel, vencer é algo que passa pela cabeça de quem está ali, mesmo que este seja apenas um iniciante. O importante é competir, mas só pensa nisso quem já perdeu. Comigo não era diferente, essa sensação era nova, já que a minha vida como atleta de Karate mal tinha começado. Então há de se dizer que, por mais ingênuo que esse sentimento fosse naquela época, sim, eu queria vencer.
Voltemos um pouco. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, apesar do tamanho reduzido do terreno Japonês, viajar de uma Província para outra não é algo que se faz com tanta rapidez e as viagens de carro pela estrada são igualmente cansativas, mesmo o Japão sendo um país pequeno. Chiba, fica ao lado de Tokyo. Tokyo por sua vez é por volta de quatro horas distante(de carro) de Shizuoka onde nós morávamos e treinávamos. Portanto era sim uma pequena viagem.
Viagens de van nunca são confortáveis, pelo menos é isso que eu sempre pensei à respeito delas(e continuo pensando), mas confesso que nesse caso eu mal lembro do desconforto. A sapateira gigante na entrada do ginásio causava curiosidade pela proporção, que era imensamente maior que a sapateira que tinha na entrada da minha escola por exemplo. Mas a organização já não me despertava muitas reações de surpresa, já que a esta altura eu já tinha me acostumado com o modo "japonês" de vida(muito por conta da escola), logo, era a mesma organização de sempre, de todos os lugares, só que em uma proporção maior.
Lembro me dos "souvenirs" à venda. Nos campeonatos grandes era de praxe ter sempre esses produtos à venda e os meus olhos sempre brilhavam ao avistá-los. Muita gente vai pensar "ah, mas nos campeonatos aqui no Brasil também tem" e eu vou responder na velocidade de um Deai que, não meu amigo, não tem. De camisetas, mochilas e outras lembranças do mundial até outras coisas "chatas" como Nunchakus e Tonfas de uma qualidade que é só preciso dizer "Made In Japan".
Desde que cheguei no Japão e comecei à praticar Karate, aquele foi o meu primeiro contato com uma massa de gaijins(ocidentais) vestindo Karate-Gis. Até então só tinha visto o meu irmão, o senpai malaio que fazia intercâmbio no nosso Dojo e aquele americano safado(tsc, tsc) que tinha chutado a cabeça do meu irmão meses atrás. Era bacana ver como o mundo do Karate-Do era grande, não apenas no Japão, mas no mundo todo mesmo. Era uma ótima sensação ver aquilo e saber que o que eu fazia, era parte de algo muito, mas muito maior do que eu imaginava.
Naquele mundial, os japoneses eram dominantes em quantidade e em qualidade(mais uma coisa óbvia). Chamaram a minha categoria e eu ali, já misturando com aquele bando de garotos japoneses olhava curioso para os garotos de outros países presentes ali. Naquele momento a minha atenção se dividia entre a competição em si e a minha curiosidade em saber se mesmo treinando em outos lugares do mundo os meninos faziam a mesma coisa que eu. Era hora de obter a minha resposta...
quinta-feira, 30 de junho de 2011
As grandes proporções de um mundo
domingo, 26 de junho de 2011
1993 - Mundial Goju-kai em Tokyo I
Para quem quiser ver o Chiba Port Arena, o endereço é: http://chibacity.spo-sin.or.jp/shisetsu/arena/shisetu/arena_main.htm Leia Mais…
quinta-feira, 23 de junho de 2011
Aprendendo sobre grandeza
Lembro-me bem daquele dia, até então eu nunca tinha visto o meu irmão ceder, perder e consequentemente cair. Caíram ali todos os treinos, todo o esforço para competir e vencer. Era estranho, porque dentro da minha cabeça não parecia ser real, um final não programado para o campeonato daquele dia. Ver o meu deitado sendo atentdido pelos médicos foi um balde de água fria para mim.
Eu tinha crescido seguindo os passos do meu irmão e tinha me acostumado à ve-lo sempre à frente de tudo e talvez até de todos. Eu nunca tinha visto o meu irmão sendo parado por nada, nem por dor, nem por cansaço, nem por "falta de tempo", por problemas financeiros ou de trabalho, mas naquele dia um chute o fez parar.
Sentados na sala de espera do hospital. Parando para me concetrar agora no que estou escrevendo, lembro e sinto perfeitamente aquela apreensão que rondava aquela sala. Eu e minha família, saímos do campeonato para ver a situação da cabeça do meu irmão.
Feitos os exames, lembro de na saída do hospital ter visto meu irmão abatido. Talvez naquela época, todos tenham pensado que era por conta da dor causada pelo chute ou coisa assim, mas eu sabia de alguma forma, eu sei que não era nada daquilo. Eu não sei explicar como, mas nos olhos do meu irmão mesmo que ele tentasse se manter firme como um budoka tem que ser com a dor, eu via de alguma forma que o que doia era o seu orgulho, a sua vontade e todos aqueles dias treinando para aquele campeonato. Mas é claro que isso, só hoje eu sei colocar em palavras, mesmo após tantos anos passados até aqui, o motivo é simples, certas coisas você só sabe por completo se aprende na prática.
Por algum tempo eu me questionei. Aquela foi a primeira, mas não foi a última vez que eu vi um ídolo cair. Hoje sei mais do que qualquer outra pessoa, de que "material" é feito um ídolo, do que é feito o meu irmão e acredito que os ídolos caem pelo simples e mais belo fator de todos, aquele que justifica a grandeza, a fraqueza ao mesmo tempo. Eles são humanos.
Parece básico e óbvio, mas não é. A grandeza da idolatria está exatamente no fato destes ídolos serem humanos no início, no meio e no fim. As pessoas geralmente os idolatram pelas conquistas, pelo presente, pelo que é visto somente agora e pelo brilhos de seus feitos. Assim muitas vezes é fácil achar que estas pessoas são, estas conquistas, o que é de longe uma maneira ingênua, inocente e em alguns casos, até ignorante de ver as coisas.
Por trás das conquistas, há lembranças de vitórias, mas certamente há muito mais histórias de decepções que se transformam em lendas da superação.
Então eu volto à lembrar daquele dia, admirando hoje como adulto os grandes feitos daqueles seres que sempre, por mais humanos que fossem, encontraram uma maneira de elevar o "nível do jogo". Falhando vez ou outra, mas nos ensinando sempre a arte de nunca desistir da persguição pela grandeza, num recomeço cada vez maior, mais forte que o anterior, que às vezes nos fazem esquecer de que a essência dessa força é meramente o fato de sermos antes e depois de tudo, humanos.
Ali, observando o meu irmão saindo do hospital, eu realmente comecei à aprender.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Ser o Caminho
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quinta-feira, 16 de junho de 2011
Até amanhã
Ao final de cada dia, deitava minha cabeça naquele travesseiro japonês, pensava um pouco no dia que tinha se passado e dormia sempre sem pensar no dia de amanhã. O dia seguinte era sempre uma consequência daquela vida que mais parecia uma aventura ainda cheia de descobertas, mesmo comigo já adaptado ao "cenário" japonês. O sentimento era de que sempre existia um mundo inteiro à ser descoberto, à ser revelado, na escola eram as novas atividades, as matérias que eu nunca teria a chance de estudar no Brasil, nas horas vagas meus amigos me mostravam cada vez mais "os clássicos da infância japonesa" que iam desde as pequenas lojas de doces do bairro(onde por cinco yens, algo como cinco centavos), se comprava um chocolate que era incrivelmente bom! Além de saboroso, era bom também para o bolso dos estudantes que viviam de suas mesadas.
Apesar do treino pesado, cada vez mais duro e intenso, o Karate sempre acabava sendo a grande descoberta que finalizava o meu dia. Todos os dias era algo diferente, às vezes tinha medo, às vezes tinha preguiça, por outras ia sorrindo e me divertindo com o meu irmão. Alguns dias voltei chorando, bravo ou decepcionado por não ter feito um treino melhor. Outras vezes, jogávamos Street Fighter no Boliche ao lado da estação em Hamamatsu, de onde chamávamos e esperávamos o Taxi chegar para nos levar para casa.
Em todas essas ocasiões, de diferentes situações, sentimentos e acontecimentos, existia lá no fundo uma coisa que era sempre igual, o gosto por aquilo tudo. Se chorava, se doia, se levava uma bronca, sabia que quando voltasse para casa e colocasse a cabeça naquele travesseiro, o dia seguinte teria a oportunidade de tentar tudo de novo e exatamante por isso não pensava no amanhã. Quando você sabe, não pensa, não questiona, porque sabe, simplismente sabe. Fazer o que não deu certo funcionar e viver todas as coisas que deram certo novamente. Era exatamente isso que acontecia.
Já faz um tempo que tudo isso aconteceu e perdi a conta de quantas noites se passaram colocando a cabeça no travesseiro querendo apenas que o tempo adormecendo passasse logo, para fazer tudo novamente. Quantos "amanhãs" eu vivi dessa mesma forma.
Ando de metrô e lembro desses dias. Jogo uma versão mais nova de Street Fighter num aparelho portátil, esperando o ônibus na estação. Caminho um trecho à pé voltando para casa pensando em como nada mudou. A verdade é que não há de mudar nunca, pois a nossa essência apenas se adapta às circunstâncias da vida e do tempo. Ao final de cada dia, coloco a cabeça no travesseiro. Amanhã? Sei que será melhor, eu apenas sei. Nós somos os mesmos.
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Nossos Troféus
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Os novos heróis
Treino aqui, treino lá, treino no dojo, treino no campo e assim, cada vez mais o passar do tempo se tornava intensamente Karate-Do. Já acostumado ao ritmo de vida de uma criança japonesa, onde as atividades escolares ocupam quase o dia inteiro, entre a escola e o Karate, cabia ainda perfeitamente as horas que eu passava com os meus amigos jogando video game, baseball no parque ou zanzando pelo bairro visitando grandes livrarias e comendo guloseimas nas lojas de conveniência.
Aos poucos eu deixava de ser o garoto que saiu do Brasil e me tornava o garoto brasileiro que vive perfeitamente no Japão.
Hoje como adulto às vezes me pergunto como era possível fazer tanta coisa! Desde que comecei os meus estudos no Japão na quarta série, as aulas da escola sempre iam até por volta das quatro horas da tarde. E como toda boa e velha vida escolar, além das aulas tinha também a lição de casa. Então o meu questinamento atual se justifica e eu tenho quase certeza de que lá naqueles dias, o tempo passava mais devagar.
Nesta rotina entre Karate, escola e amigos, existia o tempo que passava em casa com o meu irmão. E assim como eu deixava de ser o menino que saiu do Brasil, meus heróis, ídolos e referências também sofriam uma certa mutação.
Apesar de continuarmos com o nosso velho hábito de assistir filmes de luta, o espaço que tinhamos para ver alguma coisa na TV agora era dividido entre estes filmes e os vídeos de campeonatos de Karate.
Alguns vídeos eram VHSs comprados e outros eram de campeonatos que meu irmão gravava da TV.
Lembro de ter passado bastante tempo dessa parte da história assistindo aos Campeonatos Japoneses da JKF.
Vendo aqueles vídeos e ouvindo histórias que o meu irmão contava, os meus ídolos começavam à tomar uma forma mais real e os filmes de luta do Jean Claude Van Damme começavam à ficar em segundo plano, porque dali em diante não se tratava mais dos ídolos que eu gostava de ver, mas sim dos ídolos que um dia eu queria ser.
O Kizami Gyaku do Shimizu, os Urakens do Uchida (do Shimizu também), o capacete verde do Hayashi, os Ushiro-Mawashis do Enokido, os Deais do Shiina, a rivalidade entre uns e outros, tudo isso só me fazia querer ser como eles um dia. Os treinos se tornavam cada vez mais firmes, a cobrança também aumentava e incansavelmente meu irmão e eu víamos as técnicas em slow-motion no VHS, voltando a cena várias vezes para vermos melhor os detalhes( quem é da geração VHS sabe que não era legal ficar fazendo esse vai e vem), para tentarmos aquelas técnicas no treino seguinte.
Então, assim foram ficando para trás os heróis de barro, que derretiam e não me serviam de nada. Dando lugar à heróis verdadeiros que me faziam querer chegar num lugar mais alto, num patamar diferente. E o mais importante de tudo, o ídolo que eu sempre tinha ao meu lado que no dia seguinte, estava me cobrando mais velocidade nas entradas de Kizami Gyaku. Os ídolos são necessários, mas aqueles de carne, osso e sangue. Os heróis do meu mundo, aquele era de fato o meu novo mundo.
segunda-feira, 6 de junho de 2011
Japan Karate-do Federation - JKF
Quando fui promovido para Shodan, meu Mestre me filiou também à JKF, a Federação que engloba os estilos tidos como tradicionais de Karate, é o orgão oficial que administra o karate-do, tanto como esporte como arte. Esta federação é quem organiza as competições onde participam vários estilos, e também as várias categorias: Mirins, Infantis, Juvenis, Juniores, Seniores e Masters. Além dos Intercolegiais, Interclubes, Regionais, Universitários e Inter Empresas. A competição Nacional Senior é transmitida pela rede de televisão NHK geralmente no mês de dezembro e, claro, não perdíamos por nada.
Felizmente no Japão, não há as "brigas" entre organizações e federações, pois lá não se tem isso como um meio de enriquecimento, pensa-se antes de tudo no bem e preservação da arte. Por isso é uma competição bem acirrada e tecnicamente muito elevada, participando os melhores atletas de cada organização. As brigas políticas e egoísticas ficam para segundo plano, mostrando com qualidade, realmente os melhores atletas do Japão.
A marca oficial dos protetores da JKF é a Mizuno e a partir de então, tive que adquiri-los. Confesso que no início não gostava muito dos protetores de cabeça (MenHo)pois a viseria de acrílico que protegia o rosto, também embaçava e dificultava a visão. Mas era um equipamento obrigatório em competições e não restava outra alternativa a não ser se acostumar. Diferentemente das luvas, que eram perfeitas, se moldavam milimétricamente nas mãos e ao fechar o punho, não se perdia a anatomia do golpe.
Várias coisas trazem saudades daquela época, e pensar nas luvas da Mizuno, me remete de volta as passado, me remete à época em que tinha vários ídolos que víamos no campeonato da TV e também aos treinos pesados no Dojo do nosso Mestre. A mesma luva tinha vários sabores, o sabor da dor, de sangue, de ansiedade, de conquista, de alegria de uma vitória e de decepção de uma derrota. O fator predominante era sem dúvida, o prazer de colocá-las na hora do treino, sem pretensão futura, apenas aquele momento único dos treinos: A hora de lutar. Estes momentos foram muitos, mas nunca serão os mesmos.
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quinta-feira, 2 de junho de 2011
O sabor dos ideais
Assim como o Pocari Sweat tem o seu papel na nossa história, muitos outros objetos e lugares nos fazem lembrar constantemente daqueles dias no Japão, tão importantes dentro daquilo que somos, já que estamos falando das nossas raízes dentro do Karate-Do.
Se eu fosse fazer uma classificação em estações do ano dentro do nossos treinos de Karate-Do daquela época, diria que o verão era Pocari e o inverno era Milk Tea.
Para quem conhece o Japão, sabe do que estou falando. Sim, é literalmente chá com leite, que era vendido igualmente nas maquininhas de refrigerante em versões quente ou gelado. O Japão não é um templo budista ou shintoísta como muitos imaginam que seja, muito menos uma reunião de samurais engravatados. Claro, a cultura tem os seus aspectos tradicionais intáctos, mas como um país moderno e desenvolvido, também absorveu muitas outras coisas vindas do ocidente assim como o Milk Tea.
No frio, sempre tomávamos Milk Tea, saído diretamente da maquinhina situada quase ao lado da plataforma da estação de trem. Estação de Hamakita, onde à esta altura, meu irmão, à pedido do nosso sensei ia ajudar nas aulas do dojo desta cidade.
Os treinos deste dojo aconteciam de segunda e quarta-feira. E justamente nesta época, o Karate-Do começou a se tornar algo muito mais sério e cobrado, onde os nossos treinos "pessoais", fora do Dojo de sagara, agora não se limitavam mais "apenas" aos nossos treinos no parque. Lembrar dessa época chega a me dar aquela saudade que você sente, porque foi uma época de extremo aprendizado, mas não porque foi fácil ou divertido(às vezes era sim). E daí em diante, os dias certamente nunca mais seriam os mesmos trilhando este caminho. Treinar Karate-Do já não era mais algo sério, era algo muito sério.
Mas voltemos ao chá com leite. Aquele chá com leite, quentinho após os treinos de Hamakita, também fazia parte do gosto pelo Karate. Como a bebida era quente, a lata tanbém era mais grossa. Não é como aquela lata de alumínio que você amassa com a mão ou com o pé com facilidade. As latas de chá, café, bebibdas quentes e neste caso o Milk Tea, eram bem sólidas. Um metal duro onde mais uma vez meu irmão via a oportunidade de testar a si mesmo, amassando a lata com um soco(após ingerir o conteúdo é claro). E é engraçado dizer isso, mas enquanto os praticantes normais do Karate socavam Makiwaras e os meninos viam TV nas noites da semana, meu irmão e eu estávamos socando árvores e latas duras de refrigerante. Quem treina Karate-Do, vive Karate-Do e vê Karate-Do em tudo, não existe outra maneira de ser um bom praticante se você não estiver disposto à enxergar a vida desta maneira. Claro, isso não é com a boca que se faz e sim fazendo o Karate acontecer mesmo em situações onde teoricamente não existem Karate. Óbviamente que uma lata de refrigerante nunca vai substituir um Makiwara, mas se você por além do makiwara fazer alguma coisa que te aproxime, que te faça criar uma conexão com a sua técnica, por que não fazer?
Certa vez, conversando com uma pessoa mais velha ela me disse:
"Não adianta ninguém lhe dizer que o prato requintado na sua frente é delicioso, se você não provar, analisar, saborear e aí sim gostar, nada faz sentido. Se não fizer isso por si, nunca vai saber qual é a verdade, o gosto da verdade."
Hoje faz um pequeno frio em São Paulo comparado ao frio Japonês, adivinha o que eu vou beber? Vou treinar.